“Se você vem de uma cidade grande, a rua na qual você nasceu, cresceu e amadureceu, foi sua ‘terra natal’, e ela sempre foi conhecida como sua ‘vizinhança’. A residência definiu você tão certo quanto sua origem nacional e lhe deu uma afiliação vitalícia numa fraternidade que se manteve unida pelas memórias”. Com essas palavras de Will Eisner, o leitor é introduzido ao mundo de “Avenida Dropsie”.

Na obra, os personagens e a paisagem urbana são vistos através de uma melancólica tela de chuva – efeito muito utilizado pelo autor que ficou conhecido como “Eisenshpritz” (Borrifos de Eisner). Poucos personagens das histórias são admiráveis, nenhum é distinto, mas a maioria provoca pontadas de compaixão. Quando um entrevistador se referiu a eles como perdedores, Eisner contestou: “Eles são como todos nós: incapazes de prevalecer contra nossa arqui-inimiga – a vida!”.

O diretor e roteirista de teatro, Felipe Hirsch, quis trazer essa ambientação para os palcos e apostou nos recursos técnicos, criando efeitos visuais característicos das Graphic Novels do autor. A cenografia é de Daniela Thomas (diretora de cinema que participou de obras como “Paris, Te Amo”), simples e dinâmica, a fachada de um edifício e a calçada à sua frente, um conjunto que acaba representando toda a vizinhança e até mesmo toda a “grande cidade”. À frente uma tela transparente foi instalada para projeções de vídeos, apresentando títulos dos contos, palavras escritas em cartas e recados e outros efeitos visuais. Fica acentuada a expressão corporal, uma das grandes marcas do trabalho de Eisner. Esse efeito é ampliado com a ajuda da iluminação de Beto Bruel e do figurino de Veronica Julian e Marichilene Artisevskis. Essa combinação de cenário, iluminação, figurino e interpretação deixa uma semelhança com os quadrinhos quase fotográfica. A chuva foi introduzida pelo desejo do diretor de retratar o “Eisenshpritz”. O efeito visual da água no palco é incrível.

Certamente uma grande homenagem a Will Eisner, mas não cai no erro de ser reverente ao extremo às obras originais. A montagem é brasileira e alguns momentos não cabem aos cortiços da Avenida Dropsie, trazendo situações de humor e uma malícia tipicamente brasileiros. “Avenida Dropsie” foi produzida pela Sutil Companhia de Teatro, com seus oito ótimos atores interpretando incontáveis tipos que facilmente encontraríamos nas ruas de Nova York ou de alguma grande metrópole brasileira. A narração, previamente gravada, foi do falecido Gianfrancesco Guarnieri.

A peça é na verdade uma justaposição de pequenos contos retratados livro de Eisner “Avenida Dropsie” (1995) e sua primeira graphic-novel (termo criado por ele), “Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço” (1978). Este último consistia de quatro histórias sobre moradores de um conjunto habitacional no Bronx, Avenida Dropsie, 55. Em vez de heróis, ele retratava os subjugados judeus em Nova York, lutando por uma vida melhor, “passageiros em trânsito em uma viagem de ascensão social”.

Paralelamente foi produzido “Sketchbook”. Uma coleção de rascunhos, tentativas, anotações e desenhos recolhidos durante o período de ensaios de “Avenida Dropsie”. Personagens reaparecem em outras situações, imagens se deslocam e se reposicionam no fluxo da grande cidade. O conceito de “Sketchbook”, algo assim como um caderno de notas e esboços, é transposto para o palco num exercício de investigar outros pontos de vista inspirados na obra de Will Eisner. O tempo e a memória alteram os acontecimentos, criando um novo olhar sobre a idéia. “Sketchbook é uma espetáculo alternativo, uma coletânea de b-sides.”

A peça “Avenida Dropsie” esteve em curta temporada no ano de 2005 nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, juntamente com “Sketchbook”. Resumindo, as peças brasileiras “Avenida Dropsie” e “Sketchbook” são inspiradas no trabalho de um artista que rompeu preconceitos e elevou os quadrinhos à condição de arte, possibilitou que o gênero alcançasse um novo patamar de sofisticação e abriu caminho para o surgimento de outros gênios do gênero, como Alan Moore, Neil Gaiman e Frank Miller, entre outros.

Texto originalmente para a revista Crash em 2009, em parceria com Tom Marques