No centro de São Paulo uma pichação diz “Hoje em dia na Globo só tem puta e viado”. Em um comentário de uma matéria da Folha de São Paulo online sobre a novela “Império”, um leitor escreve “A Globo insiste com prostitutas e homossexuais, nas novelas de hoje só tem porcaria, as de antigamente é que eram boas” (sic).
Pois bem, vamos falar hoje de “Tieta”, uma novela escrita por três autores, e um deles era Aguinaldo Silva, que é o responsável também por “Império”. As condições entre elas são as mesmas, pois ambas são novelas das oito/nove da Rede Globo. Só muda o ano, em vez de 2015, era 1989. Vamos ver se a trama antiga era mais leve ou mais pesada que a atual, se era mais ou menos polêmica e se ela possuía uma qualidade melhor de texto e elenco. No texto, citarei ainda outras novelas recentes do horário nobre da Globo.
Incesto
Tema tabu, que foi tratado de forma velada em “Amor à Vida”, foi tratado de forma natural em “Tieta”, com a tia (Tieta – Betty Faria) tendo um caso com o sobrinho (Ricardo – Cássio Gabus Mendes). De forma mais polêmica, soubemos que Coronel Artur da Tapitanga (Ary Fontoura) teve um caso com sua sobrinha.
Pedofilia e cárcere privado
O Coronel Arthur tinha ainda sexo com diversas meninas menores de idade que eram suas escravas sexuais e viviam presas em sua casa.
Suicídio
Outro tema tabu, tratado de forma superficial em “Amor à Vida”. A esposa do Coronel Artur se matou após saber do caso do marido com sua sobrinha.
Traição e estupro
Laura (Cláudia Alencar), a esposa do Capitão Dário (Flávio Galvão) era revelada no final como a temida “mulher de branco” que atacava os homens da cidade à noite. Mas o marido também não era muito fiel a ela. Laura estuprava os homens com um sexo não convencional, que os deixava com vergonha posteriormente de dar detalhesw. Modesto Pires (Armando Bógus) era outro dos muitos infiéis e mantinha na mesma cidade de sua esposa uma amante, a “Teuda e Manteúda” Carol (Luiza Tomé), que tinha abandonado seu filho (criança) na capital.
Polêmicas com religião
O pastor Hilário (Jorge Dória), líder da “Assembléia de Cristo Rei”, tirava dinheiro dos fieis mais pobres, fazendo discursos apelativos de fé. E Amorzinho (Lília Cabral) ficava com muito tesão ao ouvir no rádio o pastor expulsando o capeta e falando frases como “me penetra com seu poder” e “me enche de coisas boas”.
Pequenos crimes
Os maus exemplos eram muitos. Como Carmosina (Arlete Salles), a dona do Correio, abrir as cartas de todos os moradores. E Tieta (ou Antonieta) usar um nome falso (falsidade ideológica).
Nudez e sexo
Na abertura uma mulher nua (Isadora Ribeiro) aparece entre os troncos, folhas e raízes das árvores, com os seios a mostra. Também teve espaço a nudez masculina com Ricardo, o sobrinho de Tieta, mostrando as nádegas. Além de inúmeras cenas de sexo, várias delas envolvendo a protagonista, seja na cama ou na areia mesmo.
Mentiras de monte
Gladstone (Paulo José) engana Carmosinha a pedido de Tieta. Ascânio (Reginaldo Faria) demorou para descobrir que a namorada Leonora (Lídia Brondi) foi prostituta. Antes, sua esposa (Helena – Françoise Forton) escondia dele outros segredos e o tratava como um idiota.
Violência
Tieta foi espancada pelo pai Zé Esteves (Sebastião Vasconcelos). Coronel Artur tinha inúmeros capangas violentos. O filho do Coronel, Arturzinho (Marcos Paulo), foi assassinado com um tiro. Mulheres saíram no tapa durante a novela e várias ameaças de morte foram feitas. Tieta também manda surrar seus inimigos, como Francisco, ex-amante de Leonora.
Homossexualidade
A novela insinua que Timóteo (Paulo Betti) era bissexual em seus trejeitos e a suspeita fica maior quando surge Ninete (Rogéria), a melhor amiga de Tieta, um travesti que cuidou de Timóteo em São Paulo. O caso mais clássico ainda é de Cosme (Paulo Nigri), o padreco que vivia no seminário com Ricardo e se mostrava muito apaixonado pelo amigo, com crises constantes de ciúmes.
Prostituição
Tieta é dona de um bordel de luxo na cidade de São Paulo, o famoso “Casarão de Higienópolis”, lá ela atende políticos e empresários muito ricos e poderosos. Já, no agreste, prostitutas pobres vivem felizes na Casa da Luz Vermelha, esbanjando alegria.
Duplo Sentido
Para bom entendedor meia palavra basta. O bairro pobre da cidade de Santana do Agreste chama-se “Buraco Fundo” e é lá que fica a mais famosa mãe de santo da cidade.
Palavrões e grosserias
Vários vocabulários próprios nordestinos são usados como “quenga”. Tieta ao se referir ao sexo também fala coisas como “Lavou tá limpa”. E a falta de educação também reina com frases como “vá, me deixe”. Coitadas das crianças dos anos 1980 que assistiam isto?
Clichês
Antes do Comendador (Alexandre Nero) ser o homem de preto de “Império”, Arturzinho só se vestia de preto e tinha nas mãos um pequeno rosário semelhante a um terço grego ou masbaha islâmico.
Americanização
Quem critica o Comendador por usar palavras em inglês em “Império”, saiba que Bebê (Simone Carvalho) se comunicava utilizando várias expressões em inglês.
Interpretação exagerada e vilã amada
Em defesa de Téo Pereira (Paulo Betti), a interpretação dada por Joana Fomm para a vilã Perpétua foi ainda mais era exagerada, carregada. E mesmo assim foi super elogiada. E não é de hoje que vilões como o Félix (Mateus Solano) são amados, as crianças adoravam Perpétua.
Maltratando a família
Perpétua tirava dinheiro da irmã Tieta e não se importava em usá-la para subir na vida. Além disto, Arturzinho desejava se vingar do pai. Laços familiares problemáticos tinham muitos.
Roubos
O padreco Cosme quase foi expulso do seminário por roubar a igreja. Seu amigo Ricardo guardou seu segredo. O telespectador descobre ainda que Leonora roubou dinheiro de Tieta para dar a um ex-amante.
Drogas
A cidade tinha seu próprio bêbado profissional, o Bafo de Bode (Benvindo Siqueira), que depois virou pastor, e também tinha vários personagens constantemente bebendo até cair ou fumando. Tudo como algo normal. Leonora foi presa por tráfico de drogas.
Políticos corruptos
O prefeito (Coronel Artur) nunca aparecia na prefeitura, tinha um laranja por lá (Ascânio), mas logo se mostrava interessado em voltar ao poder para receber um suborno de empreiteiras. Também cogitou desapropriar as terras de Mangue Seco em beneficio próprio.
Destruição ao meio ambiente
Em nome do progresso, empresários querem acabar com o Mangue Seco e para que a população local aceite, eles enviam presentes para todos os moradores.
Enrolação
Durante alguns capítulos a novela criou uma enorme barriga. Em um episódio inteiro se gastou o tempo com Dona Milú (Miriam Pires) dando uma receita. O número de personagens era tão grande quanto de uma novela de hoje em dia, a maioria sem função. A protagonista leva quase 20 capítulos para aparecer. E as brigas entre a irmã de Tieta e seu marido se estenderam por toda a novela.
Ostentação e vingança
A impressão que o telespectador tem é que Tieta só ficou feliz quando ficou rica e voltou para se vingar de sua cidade. E que ela ficou rica “fácil” se prostituindo. Fácil mesmo era ela exibir aos moradores pobres do agreste seus carros de luxo e jóias.
Impor moda
O visual de Tieta foi muito imitado, assim como bordões (“nos trinques”, “eta lele” e “tichau”). A novela ditou o que o telespectador devia fazer ou pensar, como as de hoje.
Pobreza
A cidade de Tieta não tinha nem luz elétrica e nem televisão no inicio da novela. O sonho de consumo da população era uma televisão. Mas mesmo assim era uma pobreza de horário nobre, limpa e confortável.
Tratando mal idosos e empregados
Perpétua trava mal Araci (Andrea Paola), sua empregada pobre. A empregada de Ascanio (Rafa – Liana Duval) sofria nas mãos da esposa dele, tendo ainda tinha o agravante de ser uma senhora idosa.
Racismo
Poucos negros apareciam na novela, mesmo ela se passando no nordeste, local do país com muitos afro-descendentes. A maioria surgia como empregados, como Jarro de Flor (Genivaldo dos Santos).
Consumismo e fetiche
A irmã de Tieta, Elisa (Tássia Camargo), sonhava com os galãs das revistas e ouvia todo dia as fofocas no rádio. Queria ter o que o rádio ou a TV mostrasse como sendo bom, inclusive um marido como Tarcisio Meira.
Machismo
Osnar (José Mayer) era o típico macho alfa, que acha que pode ter qualquer mulher. Um bronco, agressivo e mandão. E as telespectadoras o adoravam. Tonha (Yoná Magalhães), a madrasta de Tieta, era outra vítima do machismo do marido Zé Esteves, que não a deixava em paz.
Realidade Fantástica
Característica de Aguinaldo Silva, o clima de realidade aumentada está presente com o pastor corrupto, que solta raios pelas mãos.
Virgindade
Carmosina era a “Virgem com Mais de Quarenta Anos” da história. Tanto que sua amiga Tieta, tentando ajudar, contrata um homem para tirar a virgindade da amiga. O clichê é tanto que até fogos de artifício saíram no momento do sexo. Tudo com muita brincadeira com um tema sério.
Atores fracos
Se hoje criticamos o Felipe (Laercio Fonseca) de “Império”. Na época de “Tieta” não era muito diferente, com criticas para as interpretações equivocadas de Claudia Magno e Simone Carvalho.
Mistérios sem solução
Para quem reclamou que ficou sem saber quem era o amante de Crô (Marcelo Serrado) em “Fina Estampa”, vale lembrar que Aguinaldo Silva também não revelou o que tinha dentro da Caixa de Perpétua, um dos maiores mistérios de “Tieta”.
Fofocas
Para quem acha que novelas estimula as fofoqueiras, vale lembrar que as beatas falando mal da vida alheia. Toda a cidade era vítima delas, que seguiam ordens de Perpétua.
Spoilers
“Tieta” era um sucesso e toda revista e jornal da época queria entregar o seu final, apostando, por exemplo, em quem seria a mulher de branco na capa das publicações.
Merchans
Quem se incomoda com propagandas no meio das cenas (como a família de Claudio Bougari sempre comprando perfumes em “Império”), saiba que a prática é velha. Em “Tieta” foi anunciado, por exemplo, o videogame Master System e o serviço de telegramas pré-datados dos Correios.
Novas famílias
Tieta era solteira e tinha uma “filha adotiva”. Perpétua era uma viúva que criava os filhos sozinha. Casais como o Capitão e sua esposa optaram por não ter filhos. Variantes das famílias tradicionais como as que querem obrigar a existir no “Estatuto da Família”, projeto em andamento no Congresso, com família sendo somente um núcleo formado por “pai, mãe e filhos”. Modernos anos 1980?
Conclusão
E esta é apenas uma das novelas dos anos 1980 e 1990 mais pesadas que as atuais. Os exemplos são muitos “Mandala”, “O Dono do Mundo”, “A Próxima Vítima”, “Pedra Sobre Pedra”, “Vale Tudo”… Todas mais fortes que as tramas do horário nobre da Globo no século 21.
Matéria original de 19 de fevereiro de 2015.