Quando a Globoplay lançou o projeto “Fragmentos” divulgou em propagandas exibidas na TV Globo que seriam resgatadas novelas perdidas em incêndios na emissora. No entanto, logo os fãs de teledramaturgia perceberam que em sua maioria eram novelas que o canal optou por arquivar de forma proposital apenas alguns capítulos para economizar em uma época em que as fitas eram caras e poderiam ser reaproveitadas. Novelas com apenas dois capítulos preservados (primeiro e último) ou seis (dois primeiros, dois do meio e os dois últimos) são sinais claros desta opção dos diretores.
Novelas que fizeram sucesso eram arquivadas na integra da exibição original ou pelo menos em sua versão internacional, usada para vendas para o exterior, com cortes em cenas – especialmente as com merchans – e trocas na trilha sonora. O critério era claro, produções que deram baixa audiência, tiveram muitos problemas de bastidores ou que causaram polêmicas ou problemas com o governo federal (censura da ditadura militar) seriam apagadas e teriam suas fitas reaproveitadas. Era uma época em que ocorriam poucas reprises (no máximo duas por ano durante o horário da tarde) e não existiam nem o Canal Viva, nem DVDs e nem a Globoplay, então “qual o motivo do arquivo?” era o pensamento da direção.
A prática se seguiu até as tramas que estrearam em 1985, deste momento para frente todas as novelas estariam preservadas, com capítulos pontuais faltando. A última que está arquivada em pedaços é “Voltei para Você”, de 1984. Mas, só as novelas estão garantidas, sabemos que nos 1990 a prática continuou, por exemplo, com programa do setor de entretenimento, como os programas de auditório.
Vamos então refletir sobre motivos que podem ter ocasionado a perda de novelas que já apareceram no projeto “Fragmentos”.
O Rebu (1974)
Uma das poucas novelas que o incêndio de 1976 pode ter realmente interferido nos capítulos, já que o último não foi preservado, restando apenas o primeiro e o 92. Mas o final da trama pode ter colaborado para o último capítulo não ter sobrevivido, nele descobrimos que a vítima, Sílvia (Bete Mendes), foi assassinada por Conrad Mahler (Ziembinski) por ciúmes de Cauê (Buza Ferraz), rapaz que vivia sob proteção do milionária, em uma relação que insinuava homossexualidade. O pai adotivo que mata seu jovem afilhado por causa de uma paixão gay foi ousado para a época.
Estúpido Cupido (1976)
Poucas novelas preto e branco sobreviveram aos arquivos da Globo, e este era o caso de Estúpido Cupido, que chegou a ter duas reprises. Mas o final até hoje pode ser considerado ousado, uma meta linguagem em que um dos personagens era o próprio autor. A audiência não ajudou pois veio após o sucesso “Anjo Mau”, uma das poucas preto e branco preservadas, que teve média de 55,2 pontos. “Estúpido Cupido” deu 53,4 e depois o horário voltou a subir com “Locomotivas”, que deu 58,7 pontos.
Coração Alado (1980)
Uma trama difícil, densa, que teve dificuldades de encontrar seu público. Trata-se de uma tema complicado para a ocasião, com personagens saindo do país, como Juca Pitanga (Tarcísio Meira), em uma época em que era muito debatido o tema dos exilados da Ditadura Militar e a Lei da Anistia, assunto que irritava ao governo federal. Vivian (Vera Fischer) é estuprada pelo cunhado e Catucha (Débora Duarte) protagoniza uma cena de masturbação. Até o personagem Alberto Karany Jr. (Mário Cardoso) injetar doses de insulina era motivo de reclamação dos telespectadores.
Chega Mais (1980)
Para começar a novela não foi um fracasso completo, até foi vendida para a Itália. Derrubou o Ibope das tramas da sete, que vinha do sucesso “Marron Glacê”, de 51,5 para 49, mas nada muito grave. Mas era outra novela com problemas, como um casal na cama logo na abertura. Tom (Tony Ramos), o mocinho, era politicamente incorreto, e queria dar um golpe na família da noiva, chegando a armar um falso sequestro e abandonar ela no altar; para piorar ele nem aparecia nos primeiros capítulos. Gelly (Sônia Braga) era uma mocinha a frente da época, bem independente e determinada, que tinha uma amiga, Lúcia (Renata Sorrah), que estava se separando do seu segundo marido; e a separação era um tema tabu para a ditadura.
Sol de Verão (1982)
O grande problema desta novela foi a morte de um dos protagonistas, o ator Jardel Filho, o que descaracterizou os 17 capítulos finais. Mas não só isso. A trama principal de uma mulher se separando, a rica Rachel (Irene Ravache), e se apaixonando pelo pobre Heitor (Jardel Filho) era tudo que o regime militar não gostava. Além disso, era complicado para o público acompanhar e até compreender o protagonista surdo-mudo Abel, muito bem defendido por Tony Ramos. O mocinha Clara (Débora Bloch) que não queria obedecer os pais também irritava a censura. “Sol de Verão” deu apenas 44,5 pontos no Ibope, “Louco Amor”, que veio depois, marcou 49,5.
Os Gigantes (1979)
Primeiro de tudo, Ibope. A novela derrubou a audiência que marcou média de 61,6 de “Pai Herói” para apenas 49,3 em plenos anos 1970, em que a Globo dominava sozinha a TV brasileira. Isso já dá uma dimensão da tragédia que foi “Os Gigantes” para a emissora. Para complicar tudo, a história era muito a frente do seu tempo, com temas que hoje causariam polêmica até em uma série alternativa da Netflix. Paloma Gurgel (Dina Sfat) é uma jornalista que ao retornar ao Brasil descobre que seu irmão gêmeo, Frederico Gurgel (Roberto de Cleto), está internado em coma após uma cirurgia no cérebro e está vivo graças à ajuda de aparelhos. Ela então comete eutanásia e desliga os aparelhos que o mantêm vivo, causando o aborto da cunhada. A história ainda insinua uma possível relação lésbica entre a protagonista Paloma e Renata (Lídia Brondi), além da mocinha se suicidar no final. A censura oficial do governo implicou com a trama e o debate sobre o método predatório de multinacionais não foi bem visto pelo departamento comercial da própria emissora que exigiu mudanças.